A CORAGEM DE SER O DIVERSO
por HariShabad Kaur Khalsa
com colaboração de SatBhagat Singh Khalsa

Uma das coisas que mais me atraiu na prática do Kundalini Yoga – e que depois me levou para dentro do Sikh Dharma – foi a ideia de que a identidade e o dharma não são normativos. "Sat Nam!" é o que dizemos quando encontramos uns aos outros, “Sat Nam!” é nossa saudação quando entramos na aula ou num gurdwara, “Sat Nam!” é o que falamos quando nos despedimos.

Sat Nam!

Yogi Bhajan dizia com frequência que nossa única tarefa – e desafio – é sermos nós mesmos. Mas parece que "be to be", que é a frase de ouro da Era de Aquário, não é uma obviedade, ou antes, não veio como um manual de instruções entregue quando nascemos.

Atravessar o mundo oceânico das nossas emoções e fazer aquietar as turbulência da nossa mente (ainda não) disciplinada são os dois conselhos constantes nas falas de Yogi Bhajan e ao longo do Siri Guru Granth Sahib. Desta forma, já teria sido nos dado, de um lado, a dica sobre a tarefa que precisamos realizar (o motivo de estarmos aqui) e, de outro, os instrumentos para realizá-la. Outro instrumento, que encontraríamos ao longo do caminho, é o professor.

Contudo, (parece que) adoramos o conforto da obviedade, da repetição e da normatividade. Mais do que "be to be", esquecemos a nós mesmos no falatório das gentes (diria Heidegger), ou ainda na conversa fiada de sequer se lembrar que cada um de nós é uma individualidade particular, uma parte da criação, que veio do Criador Infinito Sem Forma, para retornar a ela depois dessa aventura finita que é a condição humana. O aconselhável é retornarmos para casa com a tarefa cumprida, mas desconfio que nem sempre é o caso. Tivemos a bênção de vir do Sem Forma, no não manifesto (nirgun) e de adquirir uma forma muito particular (sirgun), antes de nos dissolvermos novamente no Infinito, mas ficamos por aí, inautênticos, copiando formas que aparentemente "deram certo" ou que são "socialmente aceitas".

Essa é, posso dizer, um polaridade da identidade: de um lado, conformar-se ao conhecido, isto é, às normas sociais sem questionar (questionar-se ou questioná-las), e de outro, tomar a coragem para ser e ser si mesmo, independentemente do não saber, independentemente do tamanho inominável e sem dimensão do Desconhecido. Ser e ser, a cada passo, nessa relação de entrega e coragem constante com o Desconhecido.  
"Be to be", "ser para ser", vem acompanhada de outra dica: "não é a vida que importa, mas a coragem que trazemos para ela". Numa outra fala em que Yogi Bhajan define a paciência como gratificante (patience pays), ele diz que tudo nos será entregue, tudo virá, mesmo que necessitemos de um milhão de coisas. A condição é sermos nós mesmos ("if you just be you"). "Portanto, livre-se dos fantasmas da sua vida. Pare de vagar por aí. Consolide-se, concentre-se, seja você".

O que isso tudo tem a ver com dharma queer?

A gente sabe que um yogi é aquele que não se afeta pelo par de polaridades. E a gente sabe também que os gêneros masculino e feminino são pontas extremas de um par de opostos, e que entre os extremos há um espectro infinito de variações. Variações tanto em termos das vivências dos gêneros quanto de como essas vivências se manifestam em relações afetivas de casal e família. O que significa ser homem e o que significa ser mulher, na forma humana, não deveria ser visto como uma norma a seguir à risca, como se fosse um protocolo instituído definitivamente no nascimento. Ao contrário, ser homem ou mulher é uma descoberta de como as energias e as psiques masculinas e femininas dialogam entre si e se equilibram em cada um de nós. Ser homem ou mulher vai muito além de ter um pênis ou uma vagina, barba no rosto ou seios no peito – no Kundalini Yoga, cada pessoa se sente si mesma a partir de uma relação autêntica e de diálogo entre essas energias psíquicas que habitam em todos.

A expressão “queer”, que em inglês significa “estranho” ou “esquisito”, inicialmente representava um insulto, mas foi apropriada pelas pessoas que não vivem de acordo com a norma, que se experimentam de outras maneiras, e passou a representar uma identidade amorfa, “fora dos padrões”. A partir da apropriação, designa todas as formas de vivência de gênero e sexualidade que não são heteronormativas e que não se enquadram nos papéis socialmente aceitos (e reproduzidos) do que seja ser homem e ser mulher, ou do que seja a constituição de uma família tradicional. A filósofa Judith Butler explica, de forma simplificada, que “o queer não é uma identidade”, é mais “um movimento que toma uma direção diversa da que é esperada”.

Ser queer, portanto, não significa encontrar um território estranho e colonizá-lo de forma fixa e permanente. É, antes de tudo, experimentar uma movência, que é a própria existência, um caminhar constante que deixa para trás as zonas de conforto do conhecido para corajosamente desbravar caminhos rumo ao Desconhecido (que é o que há de mais eterno e inesgotável). Viver o dharma é viver nesse plano da vida cotidiana de donos de casa a experiência do Infinito no finito. É se realizar e se manifestar como parte da criação, inominável, desconhecida.

Daí vem a pergunta: o conhecido, ou o falatório das gentes, não seria também parte da criação, ou parte do Hukam? Certamente. O conhecido deveria ser tomado como aquilo que nos possibilita estar em constante movimento. Isto é: já conheço esses erros, já obtive esses aprendizados, já testei essas possibilidades, o que mais há entre eu e o desconhecido, para que eu possa sempre estar com ele e não no hábito do já domesticado? "I know the Unknown is known to me" ["sei que o Desconhecido me é conhecido"], outra pérola do Yogi Bhajan.

Nem todo conhecido é inautêntico, como por exemplo os hábitos que contribuem para um estilo de vida que nos mantêm em permanente descoberta. Os hábitos conquistados com a disciplina são esses que, apesar de parecerem minimamente conhecidos, estão sempre nos lançando diante do desconforto, nos incentivando e nos mostrando como, de fato, o Desconhecido é sem dimensão e inesgotável. Esses hábitos de um estilo de vida dhármico não permitem que a gente se acomode. "O desafio vem [e sempre] para testar seu compromisso, por isso teste o desafio e siga seu compromisso", de novo ele, Yogi Bhajan, traduzindo para nós em termos nada óbvios as pedras do caminho.

Assim fica mais fácil perceber algo simples: com a coragem e a constante investigação de nós mesmos, passamos a encarar a identidade e a percepção de mundo como coisas particulares, impossíveis de serem encerradas na obviedade de uma balança de apenas dois sexos – homem e mulher. Disso também surge, sobretudo, a experiência concreta de que a alma não tem gênero (não é masculina, não é feminina), e que a beleza da existência humana é perceber como a alma vive esse jogo entre polaridades de uma forma irrepetível e em constante movimento. Se cada um compreende que a identidade não é normativa, e que as experiências de vida também não seguem protocolos, como poderia haver espaço para discriminação e opressão das identidades particulares com que o Infinito escolheu se manifestar? Como poderia haver justificativas, no interior de um caminho dhármico, para violências contra a diversidade, em especial, das vivências de gênero e das orientações sexuais? Afinal, mais diretamente: se masculino e feminino são psiques em constante interação e integração, o leitor ou a leitora pode ser um homem feminino, uma mulher masculina, um homem masculino, uma mulher feminina, ou uma combinação disso tudo, ou ainda uma variação sem denominação específica, já que inédita. Ser cada uma delas não é nada mais do que viver a plena identidade de si: Sat Nam!

Sobre o encontro com o professor, mencionado acima, como um dos nossos instrumentos de navegação nessa tarefa igualmente queer e igualmente dhármica que é a vida, nos é ensinado que, em algum momento da nossa jornada, teremos um encontro com o professor. Também nos é ensinado que o Guru – esse instrumento que nos leva da escuridão para a luz – habita dentro de nós. Faz parte da nossa tarefa diária de amadurecimento fazer a junção entre o tico e o teco: depois de encontrarmos o professor e reconhecê-lo, começar a encontrá-lo, realizá-lo e manifestá-lo dentro de nós. Essa é a diferença entre dogma e dharma. Não há nada fora de nós – Yogi Bhajan cansou-se também de dizer isso. Quando a gente medita, é o momento de nos conectarmos com o Infinito e ter insights, instrumentos, descobertas, intuições de como manifestá-lo, de como sermos nosso próprio professor, essa consciência infinita que nos habita, porque Criador e criatura são uma só.  

Ek Ong Kar

Sat Nam!

* Texto retirado do  site: www.abaky.org.br/lgbt